quinta-feira, 10 de julho de 2025

Prosas de tédio e fastio 72 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 


72


Soltam-se as plumas da noite e a lua – porta-estandarte de todos os astros – deixa-se ver no máximo expoente das suas crateras, como quem exibe umbigos e brotos. E nem a obscuridade dos cúmulos noturnos lhe retira o brilho emprestado.

Na sua nudez aristocrática e presunçosa derrama uma áurea hipnótica, quase magnética, que cativa os uivos caninos, o trinar das guitarras e os apetites canalhas dos malandros mais ousados.

Também os gatos, felinos com refletores nos olhos, demonstram boémia ao luar e por isso fazem dos telhados os seus lugares de eleição para escrutinarem eventuais descuidos de roedores audazes, juntando-se, assim, às corujas de olho grande e aos morcegos acrobatas.

E quando os aspersores molham os jardins, a horas fora-de-horas, são mais os sonos consumados do que as insónias imprevistas ou propositadas, e os pirilampos – quais vigilantes de turno – iluminam os caminhos aos louva-deus e às formigas que perderam a noção do tempo, por terem preferido assistir ao concerto integral das cigarras vagabundas.

quarta-feira, 9 de julho de 2025

Pensamentos literários 35 - Emanuel Lomelino

Pensamentos literários 


35


Os escritores são seres camaleónicos, quase trapezistas, que deambulam, em equilíbrio precário, na ténue linha que separa a realidade da ficção.

Tanto vestem as suas cores como outras peles, de acordo com a sensibilidade que têm ou desejariam ter, numa busca incessante da perfeição que sabem não existir.

Percorrem trilhos de convicção, por vezes contrária aos seus princípios morais, apenas para dar humanismo às suas letras e ficarem mais próximos das verdades daqueles que os leem.

Os escritores são personagens com múltiplas caras e outras tantas esquizofrenias, em benefício da criação, em nome da obra, em prol da literatura, em proveito próprio.

Afirmo. Por mais que se consigam interpretar os textos, é impossível conhecer um escritor através das palavras. Até se pode identificar a origem de algumas feridas ou detectar cicatrizes, mas nunca a essência das escaras.

terça-feira, 8 de julho de 2025

Prosas de tédio e fastio 71 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 


71


Esgotou-se-me o sono, como acontece em todas as madrugadas de preguiça, e fico aqui, estaticamente deitado, a observar o silêncio aleatório da noite alta.

Na fluorescência dos pensamentos, que roem as sobras da modorra corporal, dou por mim a vaguear entre sonhos esbatidos, convicções dormentes, desejos impertinentes, certezas dúbias e outras leviandades do espírito, que só o próprio poderia explicar se fosse essa a sua vontade (que nunca é).

No meio desta sessão de tramas tão absurdas quanto despropositadas – porque a clareza das ideias nocturnas hão de esbater-se nos labirintos do mundo real – oiço o início da sinfonia piadora das aves, empoleiradas nos inexpressivos salgueiros, como estivessem a culpar-me pela sua insónia.

Abeiro-me da janela e solto um chiu mental para não acordar a vizinhança, e os pássaros, que parecem entender-me durante meio segundo, regressam às suas reclamações chilreadoras com vigor redobrado.

Perante a insolência canora, volto ao leito que esfria e sou esbofeteado pelo único pensamento lúcido que os primeiros raios solares iluminam: ainda estou de estômago vazio.

segunda-feira, 7 de julho de 2025

Prosas de tédio e fastio 70 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 


70


Afastei-me do mundo na consciência deste egoísmo que conservo, nas coisas que me são próximas, nas ideias que me motivam, na defesa de um legado (que também carrego nos ombros, em virtude de uma paixão autoalimentada, à base de crença e platonismo assumido).

Afastei-me do mundo na convicção deste interesse que mantenho, na paz do silêncio, na tranquilidade da reflexão, no apego ao equilíbrio emocional, na estima pela herança imaterial deixada por literatos coerentes, cujas palavras (leia-se obras) conseguiram, de alguma forma, indicar-me os caminhos a percorrer até encontrar a minha voz literária.

Afastei-me do mundo para deixar de sentir incómodo pela postura ébria e circense das letras contemporâneas, que apenas existem porque as luzes e ribalta anarquizaram-se em nome de uma originalidade desordenada, que nada mais é do que oposição aos clássicos por evidente falta de capacidade inovadora.

Afastei-me do mundo, simplesmente, porque o mundo nada me diz, eu já disse tudo o que havia para dizer, e agora apeguei-me a este outro mundo que tenho entre mãos.

domingo, 6 de julho de 2025

Prosas de tédio e fastio 69 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 

69

A aspereza rústica nas dobras dos dedos, que já dificulta cerrar os punhos, mais do que embrutecer o individuo, esconde a civilidade branda do toque.
A rijeza da derme tisnada pelo sol, curtida pelo vento, esculpida pela chuva, mais do que mirrar o corpo, oculta a polidez sensível do carácter.
O olhar rubro-vítreo, com cataratas e teias bailarinas, mais do que sombrear os horizontes, mascara o discernimento da alma.
Por mais tosco e quebrantado que alguém possa parecer, nunca podemos esquecer que a própria natureza é dissimulada e um simples pedaço de carvão pode ser um diamante camuflado.

sábado, 5 de julho de 2025

Devaneios sarcásticos 23 - Emanuel Lomelino

Devaneios sarcásticos 


23


Já perdi a conta ao número de vezes em que te falei sobre a migração das aves sazonais. Sim, aquelas que pavoneiam as dermes pintadas com as cores da moda e, quando a ilusão do estio se arrasta na imodéstia dos oásis virtuais, revelam a sua natureza necrófaga.

Pertencem a uma espécie com altos índices de propagação, têm uma habilidade ímpar para o logro e são capazes de metamorfosear-se de acordo com as necessidades e/ou conveniências.

Alertei-te também para a perspicácia destes seres que sabem “veneziar-se” sob as luzes dos holofotes enquanto as sombras albergam os seus verdadeiros rostos.    

Dito isto, e porque muitos desconhecem o carácter maledicente de papagaios, corvos, araras, gralhas, pavões e abutres, o melhor é não colocar milho nas mãos nem alpista nos comedouros, não vá algum outro passeriforme cuspir nos pratos que lhes tens servido.

sexta-feira, 4 de julho de 2025

Prosas de tédio e fastio 68 - Emanuel Lomelino

Imagem vecteezy

Prosas de tédio e fastio 


68


São poucos, infelizmente, aqueles que têm consciência da diferença entre o que se pensa saber e a sabedoria que se possui.

Vê-se por aí tanta gente a exibir certezas absolutas sem conhecimentos básicos, como se as verdades de cada vida fossem dogmas universais.

Se só existissem rectas e vias paralelas, talvez pudéssemos aplicar uma linearidade transversal, no entanto, todas as encruzilhadas, cruzamentos, desvios, e livre-arbítrio, demonstram quão longe a humanidade está de poder considerar a vida uma ciência exacta como a matemática mais simples.

Apesar do ponto de partida e de chegada ser o mesmo para todos, sem excepção, os caminhos entre o início e o fim diferem. E tudo isto é assim porque, na contabilidade da vida, podem-se fazer muitas contas diferentes para se obter um só resultado.

quinta-feira, 3 de julho de 2025

Epístolas sem retorno 36 - Emanuel Lomelino

Fernando Pessoa
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Prezado Fernando,


A leitura, para além de ser uma actividade lúdica, em que, querendo, se aprende bastante, é um bálsamo que despenteia a preguiça de alguns neurónios adormecidos pelas desventuras das horas-trolhas e regenera as cores que se esbatem na pobreza do dia-a-dia.

Mas nem tudo são flores – pelo menos para mim – porquanto, algumas vezes (talvez demasiadas) dou por mim a barafustar com as páginas de um ensaio ou dissertação pelo uso abusivo de palavras que, apesar de lhes conhecer o significado, me travam a língua e desviam o foco.

Entre outras, porque existem muitas mais, dou como exemplo “exegese” e “procrastinar”, duas palavras que dificilmente escutamos saídas da boca de oradores (incluída a minha), mas usadas com frequência em textos críticos e filosóficos, que têm o condão de prejudicar a fluidez das minhas leituras, pela sequência silábica que encerram.

Nessas alturas, emerge em mim uma vertigem de pensamentos e, para lá da revolta pela consciência do quão fraca a minha dicção pode revelar-se, não consigo evitar lembrar-me de alguns autores, da nossa praça de insignificância, que utilizam palavras semelhantes nos seus textos quando oralmente, mal sabem pronunciar “mortadela”, “candelabro”, “álcool” ou “otorrino”.


Supérfluo

Emanuel Lomelino

quarta-feira, 2 de julho de 2025

Epístolas sem retorno 35 - Emanuel Lomelino

Immanuel Kant
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Caro homónimo com “I”,


Compreendendo a metafísica como ciência que é, existem aspectos mundanos em que a dispenso, por inteiro, ou pelo menos na sua utilidade momentânea, porque nem todos os acontecimentos do dia-a-dia merecem reflexões profundas e detalhadas. Na maioria das vezes só preciso saber o facto, sem me deter nas causas, propósitos ou efeitos e consequências.

Posso sentir o aroma de um limoeiro, desfrutar da beleza natural de um pôr-do-sol ou deliciar-me com o chilrear dos pintassilgos, sem necessitar de justificativas elaboradas sobre os diferentes níveis de prazer. Basta-me o momento. O mesmo é aplicável a uma martelada no dedo, a uma picada de mosquito ou ao som de papel a rasgar.

Quem logra transpor este modo de estar (sem questionamentos) para situações consideradas mais complexas, como o relacionamento com os outros (plural porque são múltiplas as nuances) tem mais possibilidades de evitar dissabores. Mas deve-se ter em atenção que, aos olhos dos demais, este género de atitude nunca é bem-visto, antes é catalogado com os sentidos mais pejorativos dos adjectivos (soberba, altivez, frieza, orgulho, arrogância, egocentrismo…)

E raios partam a metafísica que, até num texto sobre a sua prescindibilidade, faz questão de marcar presença.


Irritado

Emanuel Lomelino

terça-feira, 1 de julho de 2025

Crónicas de escárnio e Manu-dizer 36 - Emanuel Lomelino

16-06-2024


Circula entre os homens uma enfermidade mais nefasta do que qualquer vírus (natural ou artificial). A sede de protagonismo acoplada à vaidade de egos exacerbados. É uma espécie de doença crónica que evolui em proporção ao mediatismo que se lhes outorga e que é tremendamente difícil de combater, mais ainda quando os enfermos se fazem rodear de claques profissionais, formadas por aqueles seres que, para temperarem as vidas insonsas com alguma agitação, aplaudem e apupam em troca de “likes” e notificações.

Qualquer um consegue identificar os viciados em holofotes. Agem como damas ofendidas quando as luzes se apagam. Têm memória curta e selectiva. Nunca contam a história toda e ocultam os seus telhados de vidro, fazendo passar uma imagem de virgem imaculada às suas plateias contratadas.

E tudo isto porque, vai-se lá saber porquê, todos eles, sem excepção, acreditam serem divinamente merecedores de vénias e adoração, como fossem messias de uma qualquer seita, e quem não se verga é filho do demo, mesmo os que, em algum momento, foram úteis mas recusaram mudar-lhes as fraldas, ou deixaram de pagar dízimo.

Infelizmente, por mais voltas que o mundo dê, parece que o único antídoto para esta maleita é esperar que o tempo resolva este género de crise de meia-idade.

segunda-feira, 30 de junho de 2025

Crónicas de escárnio e Manu-dizer 35 - Emanuel Lomelino

15-06-2024


Não me soprem fábulas aos ouvidos. Não sou vasilhame para guardar o sangue que escorre das vossas línguas bifurcadas. Tampouco serei tanque para lavar roupa suja nem cúmplice para noticiário de pasquins de esquina.

Não me cantem fados do coitadinho. Não sou depósito de letras divorciadas para armazenar os vossos arrufos de vaidade. Tampouco serei prateleira de ninharias frustradas nem varina do diz-que-disse.

Não me recitem sentenças avulsas. Não sou confessionário dos vossos linchamentos de damas ofendidas. Tampouco serei cárcere de lugares-comuns e frases-feitas nem pedra de amolar o veneno dessas facas.

Não me vendam banha-da-cobra. Não sou alguidar para escamar a beligerância fátua pescada no vosso mar de imodéstia. Tampouco serei projector de películas ficcionadas nem amplificador de cortinados virtuais.

Sou apenas um dos alvos da vossa triste existência.

domingo, 29 de junho de 2025

Epístolas sem retorno 34 - Emanuel Lomelino

John Steinbeck
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John,


Como podemos justificar que a moral consiga sobrepor-se à revolta interior? Acaso nós, que nos chamamos humanos, temos réstia de santidade suficiente para nos darmos a gestos, atitudes e comportamentos beatíficos, sem que o futuro nos outorgue o remorso? Sinto dificuldade em crer nessa hipótese!

Compreendo que a ambição nascida da responsabilidade possa transformar-se em algo hercúleo, majestoso e superior, no entanto, não consigo entender que, num momento de dor extrema, o sentido ético permaneça inviolável e alguém, com o peito dilacerado pela negritude da perda, consiga resistir à tentação – termo discutível – de mandar as convenções à fava e agir no impulso da raiva; da descrença; do inconformismo; da indignação; da morte espiritual.

Não existem neste tempo – teu, meu, e que virá – os Kinos predispostos a devolver o fruto de incontáveis sacrifícios, de ânimo leve, por mais amarga que tenha sido; seja e venha a ser; a perda. Já não há valores que se sobreponham ao ímpeto da morte.


Talvez paradoxal

Emanuel Lomelino

sábado, 28 de junho de 2025

Epístolas sem retorno 33 - Emanuel Lomelino

Ernest Hemingway
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Ernest,


A obsessão é uma armadilha inodora! Nenhum obcecado lhe sente o cheiro nem as manhas. E são tantos os momentos da vida conduzidos ao sabor das obsessões, que fica difícil negar a sua existência, e o quanto nos aprisiona, em qualquer uma das batalhas que travamos dia-a-dia.

Somos obcecados por seguir apenas um caminho, mas dizemos que somos teimosos. Somos obcecados por agir de uma forma específica, mas dizemos que somos perseverantes. Somos obcecados com alguns procedimentos, mas garantimos que somos coerentes. Somos obcecados por atingir determinados objectivos, mas juramos que somos obstinados. Somos obcecados por manter metas fixas, mas dizemos que somos insistentes. Somos obcecados com o sucesso, mas dizemos que somos ambiciosos.

No final, somadas todas as obsessões e medidas as espinhas que trazemos até ao cais da razão, acabamos por descobrir que, por mais adjectivos que usemos para explicá-las, elas nunca deixarão de ser engodos carcerários.


Obcecadamente

Emanuel Lomelino

sexta-feira, 27 de junho de 2025

Prosas de tédio e fastio 67 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 


67


Há muito deixei de ter tempo de sobra. Tampouco tenho réstias a perder. Cada segundo soma-se, e some-se, na urgência dos passos contados, e cantados, como salmos nas procissões de finados.

Entre idas e vindas laboriosas, entretenho-me a esgaçar os ponteiros dos dias, à procura de respostas para as perguntas que me assaltam e sobressaltam, sem abrandar nas encruzilhas para tentar adivinhar o melhor caminho.  Sigo em frente, sem hesitar e elas (perguntas e respostas) que me acompanhem, se tiverem pernas folgadas.

Os anos acumularam-se nos ombros, o sal já escasseia, o sol ainda aquece, a chuva molha, o vento sopra, as ondas desmaiam nas areias da praia, e nada prende mais do que um par de algemas indecisas.

Não tenho tempo a perder, nem quando estou inerte, a tentar descobrir se as cigarras são mesmo preguiçosas ou se o canto que ouvimos provém dos sopradores de folhas que elas usam para limpar os galhos das árvores.

quinta-feira, 26 de junho de 2025

Prosas de tédio e fastio 66 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 


66


Acho graça aos amoques que determinadas personagens, com a mania das grandezas e acreditando serem detentoras das verdades absolutas, têm amiúde, por dá cá aquela palha, porque sim e porque não, como se a histeria dos seus gritos mudos e absurdos atemorizassem os demais, fazendo-os enfileirar como carneirinhos conduzidos por pastores caninos.

Dá-me graça, e vontade de rir, quando vejo essas matrafonas carnavalescas, trasvestidas de autoridade suprema, a arrotarem postas de pescada, com vozes estridentes, feito varinas a depilarem-se com lâminas rombas, como se a razão as assistisse e sem perceberem o quão ridículos são os motivos da peixeirada.

Dá-me graça, mas sinto pena, dessas vedetas mediáticas que andam sob holofotes, como quem usa chapéu-de-chuva em todas as condições climatéricas, na esperança de serem notadas para não serem esquecidas, conduzidas por egos tão inflados como provincianos barrocos.

Dá-me graça, sobretudo por saber, de cor e salteado, os reais propósitos desses falsos achaques, que nada mais são do que chamarizes para papalvos, distraídos e pombos-correio.

Dá-me graça a vulgaridade de quem se vende excepcional.

quarta-feira, 25 de junho de 2025

Prosas de tédio e fastio 65 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 


65


Carl Jung alertou para as características viciantes do silêncio e para as consequências que essa adição provoca naqueles que enferma. Concordo que o silêncio vicia e que há efeitos visíveis nos que usam o silêncio como uma forma de estar e entender a vida. No entanto, no desenvolvimento da ideia, tenho de manifestar opinião contrária à tese de Jung.

Para começo de conversa, a minha primeira discordância com o psiquiatra suíço está na catalogação deste estado como sendo uma doença. Talvez por não ser psiquiatra, creio ser abusivo classificar todo e qualquer comportamento, lateral aos convencionalismos, como doença. Chamem-lhe desvio, excentricidade, rebeldia, bizarria, mania, exotismo, capricho, ou qualquer outro substantivo, mas não doença.

Na explicação de Jung, os viciados em silêncio ficam tão deslumbrados com a sensação de paz que tendem a perder interesse na interação com os humanos. Neste ponto creio que a análise foi feita em contramão. Os amantes do silêncio não perdem interesse nas interações por sentirem paz, mas sim, sentem paz, quando estão em silêncio, por terem interagido em demasia. O silêncio acaba por transformar-se no único remédio eficaz para alcançar paz e reverter a toxidade das relações com os outros.

terça-feira, 24 de junho de 2025

Crónicas de escárnio e Manu-dizer 34 - Emanuel Lomelino

12-06-2024


Por estes dias li um texto sobre a “teoria da regressão” (belíssima dissertação sobre a hipocrisia consciente da humanidade) e dei por mim a pensar nos passos atrás que se dão, quando o intuito seria continuar a evoluir.

O domínio do fogo foi evolução. A invenção da roda foi evolução. A sedentarização foi evolução. A escrita foi evolução. Todas as civilizações foram evolução. A revolução industrial foi evolução. A revolução tecnológica é evolução.

O problema, de todos os acontecimentos que permitiram evoluir, é o seu denominador comum – o homem. Um ser que, apesar de ser fruto de um longo processo evolutivo e ter toda a experiência outorgada pela evolução, não só da espécie, mas, sobretudo, do seu próprio mundo, consegue chegar a este momento da existência e permitir-se regredir na essência.

Uns por ganância. Outros por comodismo. Todos por já não poderem ser chamados humanos porque perderam a razão e a humanidade.

segunda-feira, 23 de junho de 2025

Prosas de tédio e fastio 64 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 


64


Mirro-me nesta sensação de estar, invariavelmente, a ser sugado até ao tutano, por forças ocultas, que apenas sobrevivem porque lhes resisto, ao não lhes reconhecer mérito nem importância.

É como se o peito centrifugasse o sangue, em brasa, em espirais tresloucadas pela estreiteza das veias, ao mesmo tempo que os pulmões reprimem o ar que quer libertar-se num grito de ferocidade guerreira.

Em simultâneo, a pele enruga-se ao máximo da sua elasticidade, como estivesse a fundir todas as células num único organismo bélico, pronto para explodir sem olhar aos danos colaterais.

As mãos entrelaçam-se no estalar de cada dedo, até que uma dor câmbrica formigue imparável entre as falangetas e os cotovelos.

O suor escorre, tal qual uma enxurrada, por todo o corpo. Acordo. Espirro. Nada demais. Apenas uma constipação por ter este hábito de dormir com a janela aberta.

domingo, 22 de junho de 2025

Pensamentos literários 34 - Emanuel Lomelino

Pensamentos literários 


34


Ser adicto à leitura só se revela problemático se não existir a disciplina comportamental necessária, principalmente quando, após um livro, sentimos aquele impulso compulsivo de aprofundar uma temática ou contrapor ideias.

Nesses momentos de euforia literária, é preciso usar toda a força da resolução, e autocontrolo, para impedir-nos de correr à primeira livraria e comprar uma montanha de tomos relacionados com o original.

O mesmo acontece quando ficamos deslumbrados com a escrita de determinado autor e somos impelidos a adquirir, de supetão, todas as suas obras.

Aqueles que sofrem desta enfermidade cultural sabem o quão difícil é resistir aos ímpetos insaciáveis do conhecimento. A melhor forma de combater os sintomas é reler cada obra, pois a releitura sempre nos mostra algo que nos passou despercebido e pode responder a algumas questões, sem ser preciso ler outras abordagens. Outra forma de antídoto consumista é, sempre que possível, procurar antologias, colectâneas ou resumos biográficos, onde possamos estar em contacto com as obras de modo mais superficial, contudo, mais abrangente, porque, no final das contas, não precisamos saber todas as respostas. Muitas vezes basta conhecermos alguns fragmentos para alcançarmos, por nós mesmos, a ideia global.

Tirando isto, a leitura só traz benefícios.

sábado, 21 de junho de 2025

Crónicas de escárnio e Manu-dizer 33 - Emanuel Lomelino

10-06-2024


Os abutres não deixam de pairar sobre as cabeças insufladas de modernismo. Fazem voos rasantes, com a desenvoltura de quem confia no anonimato que as suas sombras protegem, e não temem as vozes esclarecidas porque, essas, são minoria.

As ideias passaram a ser raros oásis num deserto, de areias ociosas, cada vez mais extenso e repleto de tendas ocupadas por neodepressivos que ficaram enfermos por escutarem demasiados nãos, e pensam que os pixéis dos ecrãs táteis são ingredientes de medicina alternativa probiótica.

Por este andar, ainda um dia, haveremos de encontrar embalagens de alucinogénios e pachorra-diet nas prateleiras dos supermercados, ao preço de uva-mijona e com a possibilidade de ser paga em suaves prestações de bitcoins, via transferência telepática e sem prescrição médica.

Valha-nos a Santa Imaculada Paciência de origem mandarim. Digo deste modo porque especificar a nacionalidade seria propalar um estereótipo (sentimento que apenas um caucasiano privilegiado, como eu, é capaz de expressar).

sexta-feira, 20 de junho de 2025

Epístolas sem retorno 32 - Emanuel Lomelino

Malditas são estas noites brancas onde sobressaem os sonhos interrompidos e impropérios, porque no raiar do dia tudo será exponenciado numa frustração inigualável por viver nesta época em que já não há fugas revoltosas.

Quem dera poder, sem problemas de consciência e isento de responsabilidade, recriar os teus passos de adolescente despreocupado e pegar a estrada rumo a qualquer lugar, que não este.

Ao contrário de ti, não posso simplesmente preparar um farnel com fruta, pão e enchidos, e fazer-me ao caminho, por dias e dias, deixando a vida para trás das costas. Tenho de honrar contratos, pagar contas e amparar uns quantos.

Por conta desta nobreza de carácter, tão inoportuna como castradora, sobra-me a resignação e razões de sobra para lançar, entre dentes (por ser madrugada), mais umas quantas obscenidades. Cada um no seu tempo e com o seu fado.

Tua semente

Emanuel Lomelino

quinta-feira, 19 de junho de 2025

Prosas de tédio e fastio 63 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 


63


Mais uma tarde pardacenta a atravessar-se no meu caminho, como se a minha percepção das coisas fosse uma contínua divergência. O sol e a lua nunca deixaram de revezar-se e as nuvens são transição.

Os espelhos não refletem novidades, além de uma ou outra ruga mais acentuada, fruto dos carinhos do tempo e da labuta, e os pintarroxos insistem em ser tema de conversa, tantas vezes quantas eu escrevi sobre a perfeita sensibilidade do nenúfar preferido.

O pão não deixa de ser vida, os iogurtes de frutos vermelhos têm pedaços de morango e amoras, os golfinhos sempre serão mamíferos e a Rosa é mãe de três, avó de quatro, trisavó de outra tripla (por ora), e tem um gato oportunista como um político em campanha eleitoral (depois de satisfeito o seu pedido, vira costas e não quer saber de ninguém).

As horas correm, as tarefas executam-se, as refeições confortam, os cigarros matam, as dores sentem-se, os pensamentos fluem, a mente viaja, e a campainha toca (devem ser os dois livros, da Graça Pires, que encomendei).

Volto já!

quarta-feira, 18 de junho de 2025

Pensamentos literários 33 - Emanuel Lomelino

Pensamentos literários 


33


Olho pela janela aberta ao mundo. Deixo-me seduzir pelos voos intermitentes dos piscos e procuro, entre as gaivotas, alguma que se assemelhe a Fernão Capelo.

Há um desejo de ver piruetas infames e cambalhotas irreverentes, como quem só consegue sentir-se quando deambula entre os precipícios da esquizofrenia e o jazigo frio.

Reduzo o horizonte ao solo espraiado diante de mim e surpreendo-me com um gato sem botas nem florete que usa o seu crédito pessoal de vidas ao desafiar, com mortais cabriolados, dois rafeiros parcos de senso e língua salivante.

Detecto no felino essa fome de liberdade criativa e adrenalina presunçosa que é a ascensão de um espírito aventureiro e vagabundo, como um qualquer Tom Sawyer cansado dos Sid desta vida, sempre prontos a demonstrar a sua originalidade formatada, em palcos carmins sob iluminação lilás.

Regresso ao interior da casa com o intuito de transformar os meus devaneios oculares em algo ligeiramente parecido com literatura, no entanto, fica reforçada a ideia de que, por mais voltas e reviravoltas que dê, as minhas palavras nunca terão a elasticidade das fábulas e serão sempre a representação por extenso da minha inaptidão gímnica.

terça-feira, 17 de junho de 2025

Prosas de tédio e fastio 62 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 


62


Este não é um texto de saudosismo, mas tempos houve em que as cores do dia-a-dia eram mais vívidas, mais aconchegantes.

Os rios refletiam o brilho dos céus; as searas ondulavam a cor do sol; os pomares eram arco-íris de pêssegos, laranjas e maçãs, os jardins eram viveiros de rosas, margaridas, jacintos e tulipas, que cresciam entre ilhas de carvalhos, azinheiras, rododendros, glicínias e, por vezes, jacarandás.

O amarelo era alegria; o verde era esperança; o azul era tranquilidade; o conforto era castanho, a paixão era vermelha; o romantismo era rosa; a jovialidade era laranja; o respeito era preto; a paz era branca.

Hoje, sempre que vemos algo semelhante ao descrito, dizemos estar perante uma visão paradisíaca porque tudo ficou pálido, genérico, demasiado pastel e acelerado, e ficamos sem saber em que momento perdemos as cores e nos entregámos ao cinzentismo moderno.

segunda-feira, 16 de junho de 2025

Pensamentos literários 32 - Emanuel Lomelino

Pensamentos literários 


32


Ausento-me de mim nas horas mais longas, à espera do momento certo para abraçar os pensamentos que me elevam.

Sou como um filtro de malha finíssima no garimpo da consciência, sem espaço para deixar-me enredar por irracionalidades pueris, que nada mais fazem do que emburrecer quem a elas se entrega.

Por não ser fácil manter a disciplina necessária para ganhar indiferença ao irrelevante, habituei-me a inundar a mente nos mergulhos que faço na literatura clássica - o meu eremitismo ajuda.

Com isto volto a reforçar a minha adoração pelo isolamento consciente e propositado; pelo silêncio solitário; pelas conversas mudas com os literatos do passado; com as minhas discussões internas. Mesmo que isso me coloque mais dúvidas do que certezas e mais perguntas do que respostas.

domingo, 15 de junho de 2025

Pensamentos literários 31 - Emanuel Lomelino

Pensamentos literários 


31


Felizmente, há coisas sobre as quais já não escrevo. Não é autocensura, tampouco é cansaço das temáticas. Simplesmente escrevi tudo o que queria, e podia, sobre cada um desses assuntos e nada mais me resta dizer do que silêncio.

O ofício da escrita – e destes exercícios – também inibe a exclusividade e exige uma faceta criativa múltipla e diversificada, sob pena de martelar sempre as mesmas teclas e parecer um gravador em looping.

Depois, existem toneladas de palavras que merecem a minha atenção redobrada pela amplitude dos ângulos que posso abordar, tantos são os sinónimos à procura de emprego.

Por outro lado, caso seja necessário apontar dedos e culpados, peçam-se meças aos livros que se abrem aos meus olhos e aos raciocínios que afloram nesta mente irrequieta e esquizofrénica.

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